A bursite dói,
mas a paixão tortura.
*Ademir Pedrosa
Não há nada mais abominável do que a dor de uma
bursite. O leitor, porventura, sabe o que é uma bursite? Esta
semana eu fui acometido de uma. É uma dor que dói, dói
e vai doendo... Lembrei-me de uma crônica de Rubem Braga, na qual
ele compara a dor da bursite com a dor do amor. E prefere a bursite
às amarguras de uma paixão. Uma das coisas que nunca mais
me esqueci foi dessa crônica. Eu lhe vi passear nitidamente em
minha memória, o velho Braga; o qual, como eu, já amargou
ambas as duas coisas: a dor da bursite e da paixão.
Encontrei-me recentemente, no Bar do Abreu, com um amigo, um velho amigo
de outros carnavais. Queixei-me de minha bursite. Ele se queixou de
uma paixão. Apaixonou-se por uma mocinha de dezoito anos, e os
pais dela não querem esse relacionamento indecoroso de jeito
nenhum. A mãe disse que tenho idade para ser seu pai, o que faço?
Perguntou-me numa aflição desmedida. Quantos anos você
tem?, perguntei-lhe de chofre. Cinqüenta e quatro, ele respondeu.
Fiz ali mesmo, mentalmente, uma continha, e sentenciei: sua idade não
lhe basta apenas para ser o pai dela, mas o suficiente para ser seu
avô. O duro vai ser quando os pais dela aprenderem a fazer essa
conta. Eu não sou de dar conselhos, mas diante de sua prostração,
ocorreu-me de desejar-lhe sorte. Foi o que me pareceu de mais sugestivo
àquela ocasião aziaga. Sorte para quem sofre os infortúnios
do amor, não é pouca coisa. É sorte grande. Do
tamanho de uma mega-sena acumulada!
Uma vez me disseram que o orgasmo é a concentração
aguda da dor, que em sua plenitude transcende o limite da tolerância
e se transforma em prazer. Ao contrário das cócegas que
são prazerosas, mas se instigadas de modo nímio acabam
por agravar-se em dor. São os paradoxos sensitivos. É
que nem a paixão. É gostoso se apaixonar, todos sabem.
Mas sabemos também que certamente vai doer; que o chicote existe;
que sibila no ar, e que é uma ameaça iminente a fustigar
a carne. Enquanto não nos entregamos inteiramente ao açoite,
confortamos-nos com as cócegas que nos dão certo prazer,
até esse estranho sentimento se transformar irremediavelmente
em uma dor insuportável. Aí você descobre que a
distinção entre uma e outra é tênue, quase
diáfana. Elas se misturam, elas se parecem. É tudo a mesma
coisa. A dor e a paixão faz da gente gato e sapato. Somos uns
fracos!
Descobri que minha bursite dói menos quanto mais movo o braço,
quanto mais articulo os movimentos, os gestos intermitentes atenuam
a dor obstinada. E quando eu cesso o movimento, e descanso o braço,
a dor aumenta sem trégua nem piedade, renitente. Sai dessa, amigo!
Quando você busca um pouco de conforto com o descanso, é
justamente aí que a dor se manifesta de maneira mais inclemente.
Quem já teve uma bursite sabe do que digo.
Encontro-me diante de um dilema semelhante à de uma personagem
de Antoine de Saint-Exupery, o acendedor de lampiões. Ele se
queixava de que seu planeta era muito pequeno, e que por isso, quando
terminava de apagar o último lampião, o dia já
começava a escurecer e ele tinha então que começar
acendê-los novamente. Sua laboriosa tarefa era um ciclo que não
se completava nunca, como o cão que corre em círculo na
tentativa vã de morder o próprio rabo, e que jamais vai
alcançá-lo. O Pequeno Príncipe apresentou-lhe uma
arrazoada solução: que ele caminhasse em seu pequeno planeta
em favor da órbita do sol, assim ele teria o dia e a noite do
tamanho que lhe conviesse. Ao que o acendedor de lampiões retrucou:
“não tem jeito, pois o que eu mais gosto de fazer é
dormir.”
No momento do descanso, quando você põe a cabecinha no
travesseiro é que a dor da bursite ou da paixão mais tortura.
Parece que o mal espera de tocaia que a vítima encontre a mansidão
da paz para cutucar cruelmente o nervo exposto da ferida. Nesse instante
vem à lembrança do seu amor não correspondido,
de um carinho que aquele amor desgraçado e ingrato não
o retribuiu, e aí você morde angustiadamente a fronha e
mergulha no labirinto de sua solidão. Ou, por outro lado, ao
se deitar, você nunca encontra a habitual posição
adequada pra dormir. Revira-se na cama. O ombro dói, dói...
lateja. E o sono cisma em não chegar. E quando você consegue
vitoriosamente refestelar-se aos travesseiros, e flutuar entre o sono
e a vigília, uma fisgada certeira arpoa seu ombro ou o seu coração.
Aí você desperta, na hora neutra da madrugada, à
crudelíssima realidade. É a insônia que solenemente
bate em sua porta para fazer companhia. E os dois, você e sua
indesejada companheira, de mãos dadas, vagam em reticências
pela noite insone até o amanhecer. É quando chega a hora
então de começar a apagar outra vez os lampiões.
* Escritor e professor de língua portuguesa e literatura.