RAÍZES
DA FARTURA
(OUTRO
CONTO QUE LHE CONTO)
(
Cesar Bernardo )
Quem
passasse naquele dia na estrada grande, a qualquer hora, mesmo
que com toda atenção nos grandes e sucessivos buracos
do leito da única via de acesso à cidade de Laranjal
do Jarí, mesmo que encantado com as arvores centenárias,
principalmente as maçarandubeiras e ainda que as cutias
cruzassem a estrada com a insistência habitual com que os
animais silvestres faziam naquele trecho da estrada bem dentro
da floresta, mesmo assim ouviriam o barulho de motores funcionando,
crianças brincando, mulheres e homens tagarelando lá
dentro da floresta à altura do médio rio Ararapiranga.
Quem
tomasse o ramal à esquerda logo junto ao enorme tronco
da guarupeira, seguisse adiante até encontrar a primeira
grande clareira, parecendo terra arrasada, logo encontraria os
caminhões, os tratores e as famílias agricultoras
da região como que num manifesto ruidoso de um sentimento
novo, algo que as uniria de forma tão forte que até
daria para ver.
Um
tanto abaixo de onde os homens descarregavam o calcário
e o adubo trazido pelos caminhões, também longe
das maquinas agrícolas em aquecimento dos motores, as mulheres
escolheram uma franja de bosque de capoeira para armarem a cozinha.
Usando travessões sobre forquilhas, penduravam neles enormes
caldeirões cheios de toucinho, charque, pés, orelhas
e focinhos de porco, cosendo junto com feijão fradinho.
Depois, acrescentando-se generosas porções de farinha
de mandioca, tudo aquilo seria devorado por homens exaustos do
trabalho com a terra, crianças alegremente inquietas e
mulheres envaidecidas como nunca. Uma cantiga regional embalava
toda esta movimentação: E, ê, ê, ê,
ê, ê, elê, elê, elá - Já
se vai o sol embora deixando o mundo sem luz. E, ê, ê,
ê, ê, ê, elê, elê, elá
Que santinha é aquela toda cercada de flores .....
Eram
ainda nove horas da manha quando a terra começou a ser
preparada para receber o corretivo, a propriedade escolhida era
a do Sr. Paulino Souza. À frente seguia o grande trator
de esteira virando os troncos, os grande demais davam muito trabalho
à maquina mas caiam mesmo assim e eram recolhidos pela
pá carregadeira para dentro das caçambas dos caminhões
basculantes. Os troncos menores eram empilhados nas laterais da
área que se preparava para ser um grande roçado
de mandioca. Depois vinha o trator arado sulcando fundo a terra
arenosa e a seguir o trator gradeador pulverizando ainda mais
a terra.
A
dança das maquinas terminou o dia de trabalho deixando
atrás uma mancha pardacenta na terra, que o técnico
explicou como "calagem", para reduzir a acidez do solo.
Depois
de quarenta e cinco dias a mesma máquina voltou para espalhar
o adubo químico e mistura-lo ao solo com o passeio da grade
de disco indo e vindo sobre a nova terra. O técnico explicou
que em trinta dias a roca seria plantada.
Todo
esse ritual se repetiu nos outros sítios agrícolas
da região do Arapiranga, as crianças, as mulheres,
a feijoada, as máquinas e os homens não pararam
numa mesma propriedade nos vinte e cinco dias de trabalho duro
que se sucederam. Depois disso começaram os mutirões
para o plantio das rocas, uma festa de mãos se cumprimentando,
brandindo enxadas, sulcando a terra fresca, depositando ao fundo
a estaca semente de vinte centímetros de cumprimento e
cobrindo-as com uma porção calculada de terra. Tudo
devidamente alinhado e perfeitamente obediente aos distanciamentos
determinados pelo técnico agrícola entre uma cova
e outra.
Passados
oito meses, em meio a grande surpresa inicial, as plantas vigorosas
começavam a perder as folhas. Era o sinal que eles tanto
esperaram, indicando que as ä raízes" estavam
quase maduras.
Então
recomeçaram os mutirões nas propriedades, na mesma
ordem que foram realizados no preparo da terra. A novidade ficou,
desta vez, com as carroças puxadas por cavalos e burros,
alinhadas uma atrás da outra em um dos lados do roçado
num total de oito veículos atrelados a oito animais nem
belos e nem fortes, apenas eqüinos e muares bem adestrados.
As
mulheres mais jovens e as crianças participavam da festa
da colheita brincando num terreirão que já se preparava
ao lado da lavoura para receber a roça do próximo
ano agrícola. As brincadeiras e os gritos de satisfação
cresciam apesar do sol também ir-se esquentando forte e
rapidamente.
À
sombra do mesmo bosque de antes as mulheres esposas coziam outra
grande feijoada, mas também assavam leitões e borregos
e cuidavam da bebida fermentada dos maridos, mergulhando as garrafas
na água fria do rio Ararapiranga. O tempo poderia mudar
para chuva, mas o sol brilhava sozinho naquele dia.
Quando
chegou o momento de iniciar mesmo a grande colheita do ano de
2001, o ancião deu o comando para a oração
da colheita da mandioca, de certa tradição na grande
região sul do estado:
Ao
Sol disse o ancião, voltando-se para o leste.
Agradecemos,
senhor os agricultores responderam, também voltados
para o leste.
Ao Vento disse o ancião, voltando-se para o norte.
Agradecemos
senhor, que não foi muito os agricultores responderam,
também voltados para o norte.
À Chuva disse o ancião, voltando-se o sul.
-
Bendizemos senhor, foi na medida - os agricultores responderam,
também voltados para o sul.
À
Terra disse o ancião, inclinando-se para o chão.
Agradecemos
e bendizemos, senhor - os agricultores responderam, também
inclinando-se para o chão.
Amém.
Terminada
a oração da colheita, ao sinal do ancião
o agricultor mais jovem arrancou a primeira planta. Devagar separou
os tubérculos, depois pesou-os numa balança de gancho,
conferiu a pesada com atenção, ergueu a voz e mandou
fazer estaca semente da planta colhida.
Então,
o jovem agricultor ergueu o paneiro com a mandioca colhida, orou
em silêncio com os olhos fitos no céu e depois depositou
os tubérculos aos pés do ancião. Este nada
disse ao jovem agricultor, saiu caminhando numa direção
que já conhecia até encontrar o que ele considerou
a planta-mãe daquele sitio.
Encontrando-a,
fez-lhe a marca azul, depois escolheu doze plantas em volta, marcando-as
com tinta amarela. Ergue a voz e proclama-se, as treze plantas,
incompatíveis com o fogo. Ordena o inicio efetivo da grande
colheita.
A
terra ainda fresca está escondendo uma espantosa produção
de mandioca, algo inacreditável para a maioria daqueles
agricultores que nunca tinham tido a experiência de tratar
a terra para uma finalidade definida. Onde colhiam antes nove
toneladas por hectare em dezoito meses, agora viam a terra parir
vinte e cinco toneladas por hectare em apenas onze meses.
As
raízes sobre o chão iam formando centenas de pequenos
montes, logo recolhidos pelas crianças maiores, pelas meninas,
pelos meninos e principalmente pelas mulheres esposas. A cantoria
ia num aumentando conforme as centenas de montículos se
juntavam para formar uma montanha de mandioca colhida.
A
movimentação dessas pessoas lembrava um ataque de
formigas saúvas devorando um roçado. Olhando-se
de outra maneira, via-se a harmonia do trabalho organizado em
hierarquia fluindo alegremente do interior da terra para o interior
das carroças e delas aos caminhões estacionados
na estrada vicinal de acesso ao sitio.
Depois
de cheios, os caminhões com as presumíveis cento
e vinte toneladas colhidas tomaram a estrada grande conduzindo
a safra para a fabrica de farinha de mandioca, instalada num grande
prédio na cidade de Laranjal do Jarí.
No
trecho em que a estrada cortava a grande floresta densa, os caminhões
seguiam muito devagar por causa dos buracos e por causa das dezenas
de placas educativas sinalizando o transito que, em resumo, mensageavam:
"Dirija com cuidado trafego intenso de veículos
na colheita de mandioca".
Logo
atrás dos caminhões vinham os agricultores da região,
os donos da safra embarcada naquele comboio com destino à
fabrica seguiam à frente dos caminhões em carro
aberto, sobre a carroceria da camionete, distribuindo cumprimentos
às pessoas pelas quais passavam.
À
entrada da cidade, depois da ultima ladeira estreita por demais
carcomida pela voçoroca o comboio parou para se reorganizar.
A partir dali as faixas alusivas à colheita de mandioca
foram estendidas, os rojões foram distribuídos aos
adultos orientados para espocá-los somente quando surgissem
as primeiras casas da cidade propriamente dita. A rainha da safra/2000
foi alçada ao palanque construído para esse fim
sobre a carroceria de um dos caminhões.
Ao
longo de um trajeto calculado em cerca de seis quilômetros,
A desembocar no pátio da fábrica, a população
se acumulava de um lado e outro da grande avenida Tancredo Neves.
Cada pessoa que aplaudia os agricultores parecia ter a consciência
de que a boa safra era, ao fim, uma distribuição
de renda real que botava dinheiro no bolso dos agricultores e
dos comerciantes, mas também diminuía muito o preço
do alimento na mesa urbana. Porém aquele momento era uma
oportunidade importante para a cidade homenagear o campo e demonstrar
sua cota de respeito ao trabalhador rural que abastece as cidades
com o seu trabalho.
Os
caminhões encontraram os portões da fabrica já
abertos, entraram e manobraram sem atropelos deixando espaço
para o restante do comboio terminar de ocupar o pátio de
estacionamento da fabrica.
Com
as pessoas todas acomodadas mas percebendo a grande movimentação
de populares se acotovelando lá fora, na rua em frente,
o diretor-presidente da cooperativa que gerenciava a fabrica de
derivados da mandioca ordenou o processamento inicial da safra/2000.
Naturalmente
que se tratava de um processamento simbólico, de extrema
valia para os agricultores e empresários em geral. O seu
ritual era nervoso porque tinha o objetivo de emitir sinais claros
para o mercado de produtos derivados da mandioca, iniciando-se
a partir dali uma avaliação qualitativa dos produtos
obtidos que estimularia ou inibiria as manifestações
culturais dos agricultores relativos ao cultivo da mandioca.
A
um sinal do diretor-presidente da cooperativa os operários
pararam as máquinas para que ele, passeando o olhar pela
multidão, fizesse escolhas aleatórias:
O
senhor, será o provador da farinha.
Você
jovem, será o provador de tapioca.
A
senhora, por favor, seja a avaliadora do tucupi.
Num
momento todos estavam a postos, cada qual tendo à frente
um utensílio com os produtos a serem avaliados. Passados
alguns minutos o diretor-presidente prossegue o ritual:
Senhor
provador, qual o resultado da sua avaliação para
a farinha fabricada a partir da mandioca da grande safra do ano
de 2000, do município de Laranjal do Jarí?
Excelente, senhor diretor.
Senhor provador, qual o resultado da sua avaliação
para a tapioca fabricada a partir da mandioca da grande safra
do ano de 2000, do município de Laranjal do Jarí?
Excelente, senhor diretor.
Senhora avaliadora, qual o resultado da sua avaliação
para o tucupi extraído da mandioca da grande safra do ano
de 2000, do município de Laranjal do Jarí?
- Excelente, senhor diretor.
Parcimonioso,
explorando ao máximo a ansiedade dos presentes, o diretor-presidente
da cooperativa recebe o martelo de madeira das mãos do
auxiliar, convoca o agricultor proprietário daquela primeira
grande produção de mandioca e juntos sobem na carroceria
de um caminhão deixado ali para esse fim. À quatro
mãos, o martelo é batido:
A
cooperativa compra toda a safra de mandioca do ano de 2000 colhida
no município de Laranjal do Jarí diz o diretor-presidente.
Eu vendo a safra diz o ancião representante simbólico
de todos os agricultores.
Aí o povo explode em festa, rojões, chapéus,
cerveja e cachaça são jogados para o alto. Abraços,
gritos e choros de alegria temperam a grande festa inaugural ao
tempo de prosperidade agrícola que todo o vale do Jarí
passava a conhecer.
A
partir desse dia desaparece do labor rural amapaense a figura
do plantador de mandioca, em seu lugar aparece o lavrador especialista
em agricultura econômica.