|
O homem que acreditava na palavra de Deus.
Antônio Corrêa Neto
Na instalação
da Assembléia Legislativa do Amapá, logo depois da transformação
do Território Federal em Estado, ele estava lá. Com a Bíblia
na mão repetia o mesmo ritual que o tinha levado à Câmara
de Vereadores de Macapá, sempre com o voto dos evangélicos.
Para eles o irmão de crença era o verdadeiro "homem
de Deus", capaz de combater as injustiças, defendendo os oprimidos,
cumprindo e fazendo cumprir as leis do Senhor. E não era bem assim.
Bem antes da
eleição para deputado estadual, ainda como vereador da capital
por uma ou duas legislaturas, o "irmão" estivera envolvido
em escândalos de corrupção, aliado aos esquemas montados
pelos então governantes do Território Federal do Amapá.
Falava-se muitas coisas, entre elas uma nebulosa compra e venda de um enorme
terreno localizado à margem do rio, que segundo denúncias feitas
através dos meios de comunicação, o vereador evangélico
teria vendido duas ou três vezes para governo e prefeitura, sem desocupar
a área. Mas os escândalos eram tão freqüentes que
se tornaram comuns: pouca gente dava importância para eles. E o homem
seguia se elegendo com os votos dos irmãos de fé. Todo mundo
sabia de tudo, mas os eleitores eram condescendentes "Quem sabe ele toma
juízo quando for eleito deputado estadual", diziam os amigos?
Não tomou,
e pelo contrário tornou-se mais violento. Mandou espancar agricultores,
tocou fogo na casa de um desafeto, esteve envolvido em roubo de gado, tudo
devidamente comprovado e publicado, só não julgado por causa
da chamada imunidade parlamentar, um escudo protetor para os criminosos detentores
de mandatos, que só caiu no início do terceiro milênio.
E o homem continuava com a Bíblia nas mãos, corrompendo, fazendo
chantagem, praticando violência: tudo "em nome de Deus.
O tempo foi passando
e a campanha eleitoral para a renovação do mandato chegou. E
lá foi o deputado evangélico em busca dos votos dos irmãos,
muitos deles já indignados com as barbaridades cometidas por ele.
Enquanto a figura
andava em busca de votos, a vida em Ferreira Gomes, à margem do rio
Araguari transcorria naquela tranqüilidade própria de uma pequena
cidade do interior da Amazônia. Ali vivia uma família que seguia
na vida cumprindo rigorosamente as orientações do pastor da
comunidade, cujo templo os pais daquela família freqüentavam desde
a juventude. Eram pessoas respeitáveis, de conceitos morais rígidos
e de comportamento irrepreensível, que serviam de exemplo no lugar
onde viviam.
Um dia, como
fazia há muitos anos, o casal se dirigiu ao templo para o culto semanal.
Mas aquela noite seria bem diferente.
Lá pelo
meio do culto, o pastor interrompeu a pregação para apresentar
"um irmão que é candidato a deputado estadual, e quero
que vocês o ajudem a se reeleger", foi o que disse o líder
espiritual. O homem que espelhava sua vida nos ensinamentos de Jesus tomou
um susto: o candidato que o pastor estava apresentando e praticamente exigindo
que os fiéis votassem nele, era o mesmo que aparecia freqüentemente
nos jornais e na televisão, envolvido no mais condenáveis episódios.
Aquele homem para quem o pastor pedia votos dos fiéis, não era
o que pudesse ser considerado uma pessoa exemplar, muito menos para os cristãos.
Quando o culto
acabou, o homem respeitável deixou que todos saíssem e procurou
seu pastor, perguntando se ele não sabia do comportamento daquele homem,
o mesmo que espancava pessoas, tocava fogo em residências, estava envolvido
em roubo de gado e era suspeito de tentativa de homicídio? O pastor
ficou sem jeito e procurou uma razão para justificar o apelo que fizera:
"irmão o senhor precisa entender que o irmão tem seus problemas,
mas ele prometeu que vai nos ajudar, doando as telhas para aquela parte do
templo que estamos pretendendo construir." O homem não agüentou
e foi duro: "quer dizer que desde que alguém faça uma doação
de telhas para o templo, pode cometer os crimes que quiser, violar as leis
divinas e romper com todos os exemplos que Jesus nos deixou"? O pastor
ficou sem ter o que dizer.
E o homem respeitável
continuou: "roubar, violentar, quem sabe até matar só é
crime quando feito pelos outros. Quando cometido por algum de nós deve
ser relevado, principalmente se for feita uma doação qualquer"?
Falou e nem esperou
a resposta. Deu o braço à mulher e voltou para casa. Nunca mais
botou os pés naquele templo que freqüentara a vida inteira.
|