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O
padre, o comunista e o batizado
Fazia tempo que
o Valdeci e a mulher dele, Recineide, insistiam para que minha mulher e eu
nos tornássemos padrinhos de seu filho Elder. O menino seria batizado
na fé católica, com a cerimônia marcada para a manhã
de um domingo qualquer na igreja de Fátima, em Macapá. E chegou
o dia.
Às oito
da manhã os pais, mães, compadres e comadres se juntavam aos
futuros afilhados e uns tantos curiosos. O calor era forte e foi aumentando
na medida em que a manhã avançava.
Ao entrar na
igreja cumprimentei Fernando Medeiros, à época presidente do
Partido Comunista Brasileiro, seção do Amapá, que aparentemente
se preparava para ser padrinho de uma daquelas crianças. Lembro bem
da presença de Fernando, primeiro porque ao cumprimentá-lo pensei
o quanto o Brasil havia mudado, ao ponto de um comunista poder andar livremente
pelas ruas, depois da opressão que sofremos durante os anos de chumbo
da ditadura militar. E depois porque Fernando seria uma figura marcante nos
acontecimentos daquela manhã.
A igreja lotada
viu passar o tempo e nada de o padre Rogério, vigário da paróquia
decidir iniciar a solenidade que seria um batismo coletivo. O calor já
era quase insuportável, passava muito das nove horas e a impaciência
tomava conta de todos, enquanto o padre saía da sacristia, olhava o
salão da igreja, voltava para a sacristia e o batizado, nada., E assim
foi até mais ou menos pelas dez horas, quando uma das auxiliares do
vigário saiu da sacristia e se dirigiu até onde nos encontrávamos,
falando alguma coisa ao pé do ouvido de minha futura comadre. Recineide
ouviu, olhou meio espantada na minha direção, levantou-se e
se dirigiu a sacristia de onde voltou cinco minutos depois, completamente
sem jeito. Constrangida ela me informou que o padre ainda não havia
dado início ao batismo, porque se recusava "transformar uma criança
cristã em afilhada de um comunista". E disse mais que a criança
cristã era o Elder, o filho dela, e que o padrinho comunista seria
eu, e que só faria os batizados se eu me retirasse.
No princípio
pensei em reagir contra aquela atitude preconceituosa do padre, mas depois
lembrei que ele estava na igreja dele, tratando da religião dele e
dentro das convicções dele. Foi aí que lembrei da presença
do Fernando. Olhei para o lado e percebi que ele ainda estava ali e decidi
fazer uma sacanagem com o padre. Disse que não iria sair mas concordei
em ficar quieto, ainda que o garoto que estava comigo não fosse batizado.
E assim fiz.
O batismo foi
iniciado: o padre Rogério fez as orações e abençoou
todas as crianças, Inclusive a que tinha o presidente do PCB como padrinho.
Fiquei sentado observando tudo, evidentemente irritado pelo acontecido mas
saboreando a minha vingança, por antecipação
Quando o batizado
terminou, antes de o padre Rogério entrar na sacristia consegui alcançá-lo
e perguntei: padre. Eu queria que o senhor me respondesse uma coisa. Depois
de uma criança ser batizada, alguém pode anular o batismo?"
ele me olhou meio assustado e respondeu que não. E o senhor não
batizou aquele menino que estava comigo porque acha que sou comunista, certo?"
insisti e ele respondeu que sim. Fui em frente seguindo meu pensamento e preparei
a vingança: então padre, o senhor está vendo aquele homem
de roupa escura, com o cabelo liso, ali na direção daquela coluna?
o padre fez que sim com a cabeça fiz uma pequena pausa e conclui: aquele
é o Fernando Medeiros, presidente do Partido Comunista Brasileiro,
seção do Amapá e o senhor cometeu um pecado grave porque
acaba de dar a uma criança cristã um padrinho comunista, disse,
completando a pequena maldade que havia arquitetado..
Vi que o padre
empalideceu, mas não vi o resto porque lhe dei as costas e fui embora.
Uma semana depois o batismo do Elder aconteceu em uma outra igreja, feito
por outro padre, evidentemente. ( Corrêa )
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