CALCINHA FURADA
(Outro conto que lhe conto)
Autor: César Bernardo
Revisor: Paulo Roberto Bernardo
A ansiedade era o único ponto comum entre Gonzaga e Cristal. Um
sentimento embaraçoso que ambos tentavam administrar horas antes
do início da reunião mensal ordinária que se realizaria
no Salão Oval da Cooperativa Central dos Produtores de Leite do
Vale do Caiapó.
Na manhã daquele dia se definiria a permanência ou não
de Gonzaga no posto de direção que ocupava na organização
e se Cristal conseguiria o emprego tão esperado e necessário,
na Divisão Especial de Produtos Dietéticos.
Por
conta dessa tão grande ansiedade, ambos passaram acordados uma
noite nervosa, calorenta o suficiente para fazer-lhes subir a adrenalina
para muito além do suportável. Como se estivessem comandados
pelos impulsos eletrônicos de um controle remoto, cada qual tomou
ruas para caminhar sem rumos definidos. Cansados das caminhadas, foram
se refestelar na janela dos seus apartamentos como que querendo espiar
a madrugada chegar com algum bom sentimento novo e findar com a ansiedade
que já os mergulhava numa espécie de solidão compartilhada.
Cristal
não tinha uma janela aberta para os poucos encantos da pequena
cidade. Seus olhos, como que tentando escapar do vento frio que descia
da montanha varrendo para a sarjeta papeis miúdos e folhas secas
que queriam atapetar toda superfície da rua, só podiam ir
até as paredes descascadas das velhas carcaças dos prédios
em frente. A Rua das Escravas, comprida e estreita, morta nas madrugadas,
parecia mover-se-lhe debaixo dos pés.
Debruçada
devagar sobre o batente largo da janela de duas folhas, as pernas já
adormecidas ao embalo do seu silêncio mais profundo Cristal deixava
repassar em sua mente o filme em preto e branco da grande tragédia
da sua longa vida medida em exatos vinte e seis anos, quatro meses, dois
dias e mais as seis horas que a consumiam daquela maneira desde os primeiros
minutos daquele dia.
Muitas
vezes e poucas horas entregues às lembranças, ela reviu
as pernas macérrimas que um dia se desnudaram bruscamente diante
dela, dando forma a uma das mais violentas e bestiais atitudes que um
homem é capaz de praticar contra uma mulher. Ela que, atraída
por uma possibilidade de empregar-se, terminou estuprada e manchada pela
bestilialidade humana.
Depois
de tanto tempo, ainda sem entender direito como se viu encurralada entre
a surpresa e a barbaridade, não conhecia uma forma de perdão
para aquele indivíduo e nem sabia de onde tirara tanta força
para suportar a vida até ali.
Por
causa da dor e da vergonha, Cristal gravou no fundo de sua memória
a imagem das pernas secas e do par de botas com todos aqueles detalhes
que bordavam as laterais dos canos altos, até quase aos joelhos.
Dali em diante, dominada pela impotência, decidiu que teria a vingança
como a única meta da sua vida e a tragédia como o seu maior
segredo.
Gonzaga,
como que querendo carícias da brisa matutina, abriu de vez as duas
folhas da janela grande debruçando-se sobre os seus remorsos mais
fortes. O que lhe vinha à mente com mais força, desde há
muito tempo, era a imagem da calcinha que lhe ficara como testemunho do
gozo bestial que conseguira num dia distante, quando subjugou cruelmente
uma jovem mulher que tanta excitação lhe causara.
Lembrava-se
bem de uma calcinha marrom de bordas brancas, com um orifício centro
frontal grande o suficiente para deixar à vista boa parte da região
púbica vaginal, como ele jamais tinha visto, razão pela
qual trazia-a consigo depois de tanto tempo. Suas lembranças inconfessáveis
misturavam-se com a certeza da impunidade. O anonimato em que se julgava
convenientemente mergulhado fazia-o pensar que tudo corria a favor dos
seus planos de poder na CCPLVC.
Chegou,
em fim, o momento da reunião tão esperada. Na distribuição
das pessoas em seus assentos, o acaso colocou Gonzaga e Cristal frente
a frente, separados pela descomunal largura da mesa oval que dava nome
ao salão retangular. Não sabiam exatamente o que um significava
para o outro.
Cristal
mostrava-se mais contida, estava informada de que a reunião seria
longa, se estenderia muito em razão dos discursos que se sucederiam
a partir do Secretário Geral até o Presidente, estando entre
os quais seis vices-primeiros-presidentes e três subdiretores que,
ainda bem, teriam direito a um máximo de três minutos de
pronunciamento, sem réplica.
Quanto
a Gonzaga, parecia tratar-se de uma pedra. Nada se poderia perceber ocorrendo
em seu íntimo. Para ele seria mais uma reunião de rotina
que viria consolidar ainda mais a posição de mando que ocupava
na empresa há mais de seis anos. O futuro da hora seguinte não
lhe deu nenhum aviso.
Num
dado momento, reunião em andamento, foi ao chão a folha
de pauta através da qual Cristal acompanhava os acontecimentos
com a devida atenção. Discretamente afastou um pouco a cadeira
que ocupava e abaixou-se devagar para recolher o papel que lhe caíra
quase ao pé. Foi quando, atraídos pelo destino implacável,
seus olhos foram pousar direto nas botas de couro bordadas nos canos altos
que calçavam os pés e escondiam as pernas secas do sujeito
em frente, do outro lado da mesa oval: Gonzaga.
Teve
a certeza de ter encontrado o que buscava: seu algoz. Não tremeu
um só músculo do corpo e nem lhe traiu qualquer nervo. Apenas
deixou que as lembranças amargas que trazia da vida dominassem
por mais um segundo, cobrando-lhe o compromisso que tinha com a vingança.
Ao
mesmo tempo em que via as botas e recolhia o papel do chão, veio-lhe
a decisão de que a sua vingança não se adiaria mais
um minuto sequer. Retomou a posição no assento e esperou.
Gonzaga,
sem o aviso dos minutos seguintes, também foi ao chão por
um motivo qualquer, cujo gesto passou imperceptível e sem a mínima
importância para Cristal. Abaixado, avistou em frente o par de pernas
abertas mostrando ao fundo, lá no fundo, boa parte da região
púbica vaginal através do orifício central de uma
calcinha marrom de bordas brancas, exatamente igual à que de uns
anos para cá levava no bolso e na consciência. Não
se enervou nem tremeu qualquer músculo do seu corpo esquelético;
apenas excitou-se incontrolavelmente à vista daquelas pernas da
mulher que estava em seu caminho pela segunda vez em busca de emprego.
Recomposto
à mesa, deixou seu olhar cruzar com o de Cristal, a dona da calcinha
furada. Corria a ponta da língua de um canto a outro da boca lambendo
os lábios com a intenção de ser obsceno. Cristal
recebeu a "carícia" com fingido prazer enquanto fazia
a sua arma passar do interior da bolsa para a mão esquerda. Não
deixou que seu olhar passasse a Gonzaga o último aviso.
Sob
a mesa ela cuidou da mira por muito tempo, quase imóvel. Gastou
nisso quase quinze segundos, queria ter a certeza de que quando atirasse
colocaria a bala bem entre os dois testículos do criminoso, sem
no entanto desejar que o infame morresse de imediato. Também não
queria que ele perdesse a fala por causa da dor que lhe adviria com o
furor da bala calibre 38, reservada a ele desde o dia do estupro. No seu
entender Gonzaga era uma besta em pele humana sem qualquer merecimento
e que, portanto, tinha que uivar de dor quando a força total da
sua vingança o atingisse da forma planejada. Quanto mais gritasse
mais diminuiria nas entranhas de Cristal o sangramento, a vergonha e o
nojo.
Então,
assustador, ecoou o tiro seco e certeiro, tanto mais porque apanhou ereto
o pênis criminoso, desejoso de mais sevícias hediondas. Enquanto
durou a eternidade dos dois ou três primeiros segundos que se seguiram,
Gonzaga pareceu apenas assustado como os demais presentes. Não
percebera ainda o dreno aberto até o reto e o sangue que lhe empapava
as calças à altura do quadril.
Mesmo
dominado pelo espanto e pela dor lancinante, Gonzaga ainda viveu os segundos
suficientes para perceber que o projétil lhe destruíra quase
todo o pênis, dilacerara inteiramente os dois testículo e
seguira arruinando uma infinidade de delicados vasos sangüíneos,
nervos e músculos, de forma irremediável. Certo de que chegava
ao fim golpeado pela mão pesada da vingança implacável
que lhe oferecia a um só tempo realidade e dor insuportáveis,
aí uivou como a besta que era, repetiu o uivo mas não se
mexeu mais, nem os olhos nem os dedos. Foi tombando devagar até
bater no colo da morte.
-
Essa desgraçada matou a nossa surpresa, ela sabia que o Dr. Gonzaga
seria. escolhido o novo presidente da Cooperativa Central dos Produtores
de Leite do Vale do Caiapó - apontou-a berrando o descontrolado
presidente que saía.
-Ela,
esta maldita, atirou de propósito no piru dele. Infame, no piru
dele não devia - acorreu aos berros um tal vice-presidente, apossando-se
da mesma arma, com que disparou uma bala certeira na cabeça de
Cristal.
Depois
de se aproximar o máximo possível do que sobrou do rosto
da morta, ainda brandindo a arma, ele esclareceu:
- Ele era o meu homem, sua vaca.
Quando
tudo voltou ao controle dos menos exaltados, foram encontradas as duas
calcinhas, uma no bolso do Gonzaga bem perto do que sobrou do pênis
e outra no corpo de Cristal, deixando escapar pelo orifício estranho
uma mecha de pentelhos muito negros. Aí, as explicações
já não eram mais necessárias: foram crimes passionais.
Macapá
-Setembro/93
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