Inglês de
Souza
O BAILE DO JUDEU
Ora, um dia, lembrou-se
o Judeu de dar um baile e atreveu-se a convidar a gente da terra, a
modo de escárnio pela verdadeira religião de Deus Crucificado,
não esquecendo, no convite, família alguma das mais importantes
de toda a redondeza da vila. Só não convidou o vigário,
o sacristão, nem o andador das almas, e menos ainda o Juiz de
Direito; a este, por medo de se meter com a Justiça, e aqueles,
pela certeza de que o mandariam pentear macacos.
Era de supor que ninguém acudisse ao convite do homem que havia
pregado as bentas mãos e os pés de Nosso Senhor Jesus-Cristo
numa cruz, mas, às oito horas da noite daquele famoso dia, a
casa do Judeu, que fica na rua da frente, a umas dez braças,
quando muito, da barranca do rio, já não podia conter
o povo que lhe entrava pela porta adentro; coisa digna de admirar-se,
hoje que se prendem bispos e por toda parte se desmascaram lojas maçônicas,
mas muito de assombrar naqueles tempos em que havia sempre algum temor
de Deus e dos mandamentos de sua Santa Madre Igreja Católica
Apostólica Romana.
Lá estavam, em plena judiaria, pois assim se pode chamar a casa
de um malvado Judeu, o tenente-coronel Bento de Arruda, comandante da
guarda nacional, o capitão Coutinho, comissário das terras,
o dr. Filgueiras, o delegado de polícia, o coletor, o agente
da companhia do Amazonas; toda a gente grada, enfim, pretextando uma
curiosidade desesperada de saber se, de fato, o Judeu adorava uma cabeça
de cavalo mas, na realidade, movida da notícia da excelente cerveja
Bass e dos sequilhos que o Isaac arranjara para aquela noite, entrava
alegremente no covil de um inimigo da Igreja, com a mesma frescura com
que iria visitar um bom cristão.
Era em junho, num dos anos de maior enchente do Amazonas. As águas
do rio, tendo crescido muito, haviam engolido a praia e iam pela ribanceira
acima, parecendo querer inundar a rua da frente e ameaçando com
um abismo de vinte pés de profundidade os incautos transeuntes
que se aproximavam do barranco.
O povo que não obtivera convite, isto é, a gente de pouco
mais ou menos, apinhava-se em frente a casa do Judeu, brilhante de luzes,
graças aos lampiões de querosene tirados da sua loja,
que é bem sortida. De torcidas e óleo é que ele
devia ter gasto suas patacas nessa noite, pois quantos lampiões
bem lavadinhos, esfregados com cinza, hão de ter voltado para
as prateleiras da bodega.
Começou o baile às oito horas, logo que chegou a orquestra
composta do Chico Carapana, que tocava violão; do Pedro Rabequinha
e do Raimundo Penaforte, um tocador de flauta de que o Amazonas se orgulha.
Muito pode o amor ao dinheiro, pois que esses pobres homens não
duvidaram tocar na festa do Judeu com os mesmos instrumentos com que
acompanhavam a missa aos domingos na Matriz. Por isso dois deles já
foram severamente castigados, tendo o Chico Carapana morrido afogado
um ano depois do baile e o Pedro Rabequinha sofrido quatro meses de
cadeia por uma descompostura que passou ao capitão Coutinho a
propósito de uma questão de terras. O Penaforte, que se
acautele!
Muito se dançou naquela noite e, a falar a verdade, muito se
bebeu também, porque em todos os intervalos da dança lá
corriam pela sala os copos da tal cerveja Bass, que fizera muita gente
boa esquecer os seus deveres. O contentamento era geral e alguns tolos
chegavam mesmo a dizer que na vila nunca se vira um baile igual!
A rainha do baile era, incontestavelmente, a D. Mariquinhas, a mulher
do tenente-coronel Bento de Arruda,
casadinha de três semanas, alta, gorda, tão rosada que
parecia uma portuguesa. A D. Mariquinhas tinha uns olhos pretos que
tinham transtornado a cabeça de muita gente; o que mais nela
encantava era a faceirice com que sorria a todos, parecendo não
conhecer maior prazer do que ser agradável a quem lhe falava.
O seu casamento fora por muitos lastimado, embora o tenente-coronel
não fosse propriamente um velho, pois não passava ainda
dos cinqüenta; diziam todos que uma moça nas condições
daquela tinha onde escolher melhor e falava-se muito de um certo Lulu
Valente, rapaz dado a caçoadas de bom gosto, que morrera pela
moça e ficara fora de si com o casamento do tenente-coronel;
mas a mãe era pobre, uma simples professora régia!
O tenente-coronel era rico, viúvo e sem filhos e tantos foram
os conselhos, os rogos e agrados e, segundo outros, ameaças da
velha, que D. Mariquinhas não teve outro remédio que mandar
o Lulu às favas e casar com o Bento de Arruda. Mas, nem por isso,
perdeu a alegria e amabilidade e, na noite do baile do Judeu, estava
deslumbrante de formosura. Com seu vestido de nobreza azul-celeste,
as suas pulseiras de esmeraldas e rubis, os seus belos braços
brancos e roliços de uma carnadura rija; e alegre como um passarinho
em manhã de verão. Se havia, porém, nesse baile,
alguém alegre e satisfeito de sua sorte, era o tenente-coronel
Bento de Arruda que, sem dançar, encostado aos umbrais de uma
porta, seguia com o olhar apaixonado todos os movimentos da mulher,
cujo vestido, às vezes, no rodopiar da valsa, vinha roçar-lhe
as calças brancas, causando-lhe calafrios de contentamento e
de amor.
Às onze horas da noite, quando mais animado ia o baile, entrou
um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado,
que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola
levantada do casaco. Foi direto a D. Mariquinhas, deu-lhe a mão,
tirando-a para uma contradança que ia começar.
Foi muito grande a surpresa de todos, vendo aquele sujeito de chapéu
na cabeça e mal-amanhado, atrever-se a tirar uma senhora para
dançar, mas logo cuidaram que aquilo era uma troça e puseram-se
a rir, com vontade, acercando-se do recém-chegado para ver o
que faria. A própria mulher do Bento de Arruda ria-se a bandeiras
despregadas e, ao começar a música, lá se pôs
o sujeito a dançar, fazendo muitas macaquices, segurando a dama
pela mão, pela cintura, pelas espáduas, nos quase abraços
lascivos, parecendo muito entusiasmado. Toda a gente ria, inclusive
o tenente-coronel, que achava uma graça imensa naquele desconhecido
a dar-se ao desfrute com sua mulher, cujos encantos, no pensar dele,
mais se mostravam naquelas circunstâncias.
- Já viram que tipo? Já viram que gaiatice? É mesmo
muito engraçado, pois não é? Mas quem será
o diacho do homem? E essa de não tirar o chapéu? Ele parece
ter medo de mostrar a cara... Isto é alguma troça do Manduca
Alfaiate ou do Lulu Valente! Ora, não é! Pois não
se está vendo que é o imediato do vapor que chegou hoje!
E um moço muito engraçado, apesar de português!
Eu, outro dia, o vi fazer uma em Óbidos, que foi de fazer rir
as pedras ! Agüente, dona Mariquinhas, o seu par é um decidido!
Toque para diante, seu Rabequinha, não deixe parar a música
no melhor da história!
No meio de estas e outras exclamações semelhantes, o original
cavalheiro saltava, fazia trejeitos sinistros, dava guinchos estúrdios,
dançava desordenadamente, agarrando a dona Mariquinhas, que já
começava a perder o fôlego e parara de rir. O Rabequinha
friccionava com força o instrumento e sacudia nervosamente a
cabeça. O Carapana dobrava-se sobre o violão e calejava
os dedos para tirar sons mais fortes que dominassem o vozerio; o Pena-forte,
mal contendo o riso, perdera a embocadura e só conseguia tirar
da flauta uns estrídulos sons desafinados, que aumentavam o burlesco
do episódio. Os três músicos, eletrizados pelos
aplausos dos circunstantes e pela originalidade do caso, faziam um supremo
esforço, enchendo o ar de uma confusão de notas agudas,
roucas e estridentes, que dilaceravam os ouvidos, irritavam os nervos
e aumentavam a excitação cerebral de que eles mesmos e
os convidados estavam possuídos.
As risadas e exclamações ruidosas dos convidados, o tropel
dos novos espectadores, que chegavam em chusma do interior da casa e
da rua, acotovelando-se para ver por sobre a cabeça dos outros;
sonatas discordantes do violão, da rabeca e da flauta e, sobretudo,
os grunhidos sinistramente burlescos do sujeito de chapéu desabado,
abafavam os gemidos surdos da esposa de Bento de Arruda, que começava
a desfalecer de cansaço e parecia já não experimentar
prazer algum naquela dança desenfreada que alegrava tanta gente.
Farto de repetir pela sexta vez o motivo da quinta parte da quadrilha,
o Rabequinha fez aos companheiros um sinal de convenção
e, bruscamente, a orquestra passou, sem transição, a tocar
a dança da moda.
Um bravo geral aplaudiu a melodia cadenciada e monótona da "varsoviana",
a cujos primeiros compassos correspondeu um viva prolongado. Os pares
que ainda dançavam retiraram-se, para melhor poder apreciar o
engraçado cavalheiro de chapéu desabado que, estreitando
então a dama contra o côncavo peito, rompeu numa valsa
vertiginosa, num verdadeiro turbilhão, a ponto de se não
distinguirem quase os dois vultos que rodopiavam entrelaçados,
espalhando toda a gente e derrubando tudo quanto encontravam. A moça
não sentiu mais o soalho sob os pés, milhares de luzes
ofuscavam-lhe a vista, tudo rodava em torno dela; o seu rosto exprimia
uma angústia suprema, em que alguns maliciosos sonharam ver um
êxtase de amor.
No meio dessa estupenda valsa, o homem deixa cair o chapéu e
o tenente-coronel, que o seguiu assustado, para pedir que parassem,
viu, com horror, que o tal sujeito tinha a cabeça furada. Em
vez de ser homem, era um boto, sim, um grande boto, ou o demônio
por ele, mas um senhor boto que afetava, por um maior escárnio,
uma vaga semelhança com o Lulu Valente. O monstro, arrastando
a desgraçada dama pela porta fora, espavorido com o sinal da
cruz feito pelo Bento de Arruda, atravessou a rua, sempre valsando ao
som da 'varsoviana" e, chegando à ribanceira do rio, atirou-se
lá de cima com a moça imprudente e com ela se atufou nas
águas.
Desde essa vez, ninguém quis voltar aos bailes do Judeu.