A morte passou bem perto em 64.
Lupércio
Montenegro era um pernambucano, alto magro e rijo. Em 1964 já
havia ultrapassado a faixa dos 70 anos e vivia em Bragança,
no Pará, onde chamou a atenção das autoridades
da repressão logo depois do golpe militar de 31 de março,
ou 1º de abril, para quem assim preferir. Lupércio
realizava a primeira experiência socialista de que se tem
notícia, na região. Em uma fazenda de sua propriedade
num lugar chamado Cacoal do Peritoró, perto do município
de Vizeu, já para os lados do Maranhão, todo o resultado
da produção retiradas as despesas, era dividido
com os trabalhadores. Em 1964 isso era comunismo puro, mas nos
deixava, os jovens "subversivos", fascinados.
Lupércio tinha participado no início do ano, de
um processo eleitoral que me levara a presidência de uma
das cooperativas criadas pelo BASA, uma tentativa frustrada de
fazer chegar recursos oficiais aos produtores rurais. Meu tempo
era dividido entre o trabalho no MEB Movimento de Educação
de Base, uma entidade da igreja católica que trabalhava
com escolas radiofônicas, transmitindo aulas através
da Rádio Educadora de Bragança, uma emissora da
Prelazia controlada pelos padres barnabitas, italianos, e a administração
da Cooperativa Mista de Bragança, assim era o nome.
Um mês antes do golpe militar, escrevi um texto para o programa
de rádio-teatro que apresentávamos aos sábados,
orientando os posseiros sobre problemas que eles enfrentavam no
dia a dia.
Naquele tempo a grilagem de terras na região da Belém-Brasília
se fazia com a complacência das autoridades, e indiferença
quase geral da sociedade. O programa tinha como personagens um
padre, uma professora, e um posseiro que morava há trinta
anos em uma área na lateral da rodovia, próximo
de São Miguel do Guamá. Ele estava ameaçado
de perder tudo o que havia construído para a sobrevivência
de sua família, porque um grileiro passara pelo local,
anotara os dados da terra com o que requereu na capital o título
de domínio, facilmente concedido. Angustiado o homem recorrera
ao padre e à professora, buscando encontrar um caminho
que garantisse a propriedade do lote que ocupava há tanto
tempo. Durante o programa após os conselhos da professora,
o padre, que no meu entendimento representava a ala progressista
da igreja muito ativa no momento, lhe disse que deveria seguir
os caminhos legais para garantir a posse, mas sabendo que a lei
sempre favorecia os mais ricos, lembrou que ele tinha direito
de usar todos os recursos, inclusive o uso de armas, para manter
sua família na terra de onde tirava o sustento. O programa
provocou constrangimentos inclusive entre os padres, donos da
rádio, mas como não havia censura prévia
ainda, também não tinha como remediar. O programa
foi para o ar e meu nome passou a circular nas relações
dos subversivos, coisa que só fui saber algum tempo depois.
Era um tempo muito difícil, com prenúncios de temporal
que acabou chegando com o golpe militar.
O velho Lupércio continuava ajudando na recuperação
da cooperativa, e isso nos mantinha muito próximos. Ele
me chamava de filho, e aprendi muito com sua sabedoria, com sua
dignidade. Mas Lupércio era um homem marcado, e um dia
sumiu. O golpe militar foi seguido pela ditadura e as notícias
da repressão chegavam como se fossem referentes a fatos
de um outro mundo, muito distante de nós, e não
era. A repressão foi chegando mais perto e nos atingiu
em cheio. Nossa hora era chegada.
Creio que estávamos em julho ou agosto de 1964. Um certo
medo nos dominava porque as coisas já aconteciam cada vez
com maior freqüência e velocidade. Parte desse medo
vinha do desaparecimento de Lupércio Montenegro, afinal
se falava muito de prisões, torturas e assassinatos nos
subterrâneos do poder, aquilo que mais tarde ficou conhecido
como os "porões da ditadura".
Uma certa madrugada, mais ou menos às três e meia
da manhã, alguém bateu na janela do quarto onde
eu morava, no Hotel Carioca do velho Frutuoso, praça de
São Benedito, de onde se tinha uma vista maravilhosa do
rio Caetés. Surpreso e feliz reconheci a voz angustiada
de Lupércio Montenegro e fui abrir a porta. O velho amigo,
cansado, sujo de lama, roupa rasgada, com alguns ferimentos pelo
corpo entrou e depois de tomar alguns copos com água me
alertou para o risco que eu corria: "você precisa fugir
imediatamente. Eles vão matar você", disse,
me deixando quase paralisado. Perguntei quem ia me matar e por
que, e ele contou tudo. Dois dias antes, Lupércio estava
escondido em sua fazenda quando chegaram um oficial do Exército,
um cabo e alguns soldados que o prenderam sem qualquer explicação.
Ele sabia que estava sendo preso por causa da divisão dos
lucros da produção com seus trabalhadores.
A distância entre a fazenda de Lupércio até
a margem da rodovia Bragança Vizeu era percorrida
em mais de doze horas à cavalo, por caminhos dentro da
floresta. O dono da fazenda teve as mãos amarradas e foi
colocado no lombo de um burro, iniciando a caminhada até
o local onde se encontravam os carros dos militares. A comitiva
partiu no meio da manhã e durante o percurso Lupércio
descobriu que ia morrer, quando um dos integrantes do grupo falou
para o outro: "a gente chega em Bragança, pega aquele
outro comunista filho da puta da rádio dos padres, e na
estrada para Belém mata os dois e depois diz que eles tentaram
fugir". O "comunista filho da puta da rádio dos
padres" era eu, e Lupércio soube disso porque um dos
outros soldados falou meu nome. O velho pernambucano fez que não
tinha ouvido nada, e seguiu viagem no meio do grupo, esperando
a noite chegar.
Quando escureceu e o grupo passava por um caminho estreito, Lupércio
escorregou do lombo do burro e entrou na mata que ele conhecia
como ninguém. Os gritos se fizeram ouvir, enfraquecendo
na medida em que ele se afastava do local, conseguindo desatar
os nós da corda, continuando a caminhada em busca de um
abrigo onde passou a noite. No dia seguinte alcançou a
estrada e já ao escurecer conseguiu uma carona chegando
até perto de Bragança. Voltou para o mato e ali
ficou até chegar a madrugada quando se dirigiu ao hotel,
onde me contou a história toda. Minhas pernas tremiam e
eu suava como se estivesse em uma sauna. Parei para pensar, e
mesmo sabendo que os soldados continuavam procurando Lupércio
na região do Peritoró, segundo informações
do próprio Lupércio, eu não tinha a menor
idéia do que poderia fazer. Foi nesse momento que descobri
a realidade: a coisa era muito mais séria que nosso romantismo
podia imaginar. Lupércio Montenegro disse que ia sumir
e na manhã do mesmo dia eu estava no Maquiné, na
propriedade do compadre Rodrigo Nelson Ferreira, um militante
do nascente movimento do campo, e ali fiquei mais de quarenta
dias, escondido. Enquanto isso o pessoal do Movimento de Educação
de Base providenciava minha ida para Manaus, o que aconteceu algum
tempo depois. Meus amigos e minha família nunca souberam
que casei por procuração, em fevereiro de 1965,
porque seria preso se voltasse. De Lupércio tive poucas
notícias depois do episódio: algumas davam conta
de que ele tinha sido preso, passou algum tempo na prisão
mas foi liberado depois. Só muitos anos depois, quando
as coisas já estavam mais ou menos calmas, pude voltar
ao Pará. (Antonio Corrêa Neto )