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O
DIAMANTEIRO
Da série: Para Ler na fila
César Bernardo de Souza
Ouvídio era
o mais solitário dos homens que desciam o rio Matauaú, vindos
do garimpo do Chico da Moita depois de mais de vinte meses vivendo em
barracos de lona que mudavam de lugar conforme abundava ou escasseava
o ouro que os garimpeiros procuravam separar da terra erodida a jato d’água.
Só o coração do Ouvídio pronunciava palavras
naturalmente inaudíveis, que nem ele conseguia fazer-se ouvir quando
gemia e nem quando gritava sua solidão.
Decidiu que abandonaria a vida de garimpeiro, tudo que vivera enquanto
durou sua corrida para o ouro lhe parecia agora, aos cinquenta e quatro
anos de idade, uma entrega voluntária a vida escrava que, sempre,
no curto prazo adoecia e envelhecia a maioria dos garimpeiros, matando
parte deles sem que isso importasse qualquer coisa ao restante da sociedade.
Durante quase oito meses Ouvídio perambulou pela cidade de Laranjal
do Jari, habitualmente ele buscava um ponto qualquer da extensa rua beira
rio onde sentar-se para ficar mais sozinho e mais quieto dentro de si
mesmo. Quase todos os dias podia ser visto ali, em todas as vezes seus
olhos miravam um ponto distante que estaria lá pelo pôr do
sol. Mesmo assim não era um olhar para fora das suas entranhas
(e de si mesmo), ninguém que o visse em seu recolhimento seria
capaz de supor o que ele olhava e nem quais pequenos ou grandes construções
fazia sobre a realidade futura que o tal ponto encerrava. Ouvídio
era como a vida intra-uterina, incapaz de se perturbar com o seu redor
e de sofrer com o isolamento perfeito que se impunha em todos os dias
dos muitos anos de solidão familiar e comunitária que o
marcava tão singularmente.
Depois desses arrastados meses na cidade Ouvídio desapareceu de
Laranjal do Jari sem deixar atrás de si uma única pessoa
preocupada com o seu destino. Josué, um comerciante da Rua da Passarela,
era a raríssima pessoa da cidade com a qual Ouvídio trocava
palavras e fazia negócios, mas nem ele se preocupou com o súbito
desaparecimento do homem estranho que falava muito pouco.
Ouvídio pôs-se em movimento floresta adentro, caminhava devagar
e sem parar carregando à tiracolo um grande bornal de viagem construído
em pano grosso e grosseiramente costurado à mão. Valia-se
de uma bengala de madeira bruta que ele colheu no início da caminhada
com apenas três golpes de facão. Como um homem do campo,
sábio e afeito às durezas da vida na floresta guiava-se
pelas árvores mais altas e troncudas, guias naturais da caminhada
até o ponto de chagada que só ele conhecia. A experiência
fazia-o caminhar sempre de uma grande árvore a outra, sem se afastar
da mesa dos morros, tendo o sol atrás de si até o meio dia.
Esses pequenos cuidados eram suficientes para dar-lhe a certeza de que
o rumo oeste pretendido estava mantido.
Um dia entendeu que não suportaria mais a caminhada, os pés
estavam inchados, doíam as duas pernas, os braços não
pareciam sincronizados com o cérebro, o saco de viagem pesava sempre
mais apesar de ir-se esvaziando de sal, óleo, açúcar
e café dia após dia na medida em que iam sendo subtraídos
da totalidade do peso formado juntamente com outras mercadorias necessárias
que Ouvídio transportava resignadamente ao ponto futuro.
Desse dia em diante sua atenção desviou-se quase que completamente
para a busca de um bom lugar onde morar. Não sabia quantos dias
consumira na caminhada e também não tinha planos para a
moradia que podia ser no proveito de um tronco oco, em forquilhas muito
fortes de uma árvore, ou mesmo debaixo de pedras encostadas. Pouca
importância essas coisas tinham para um homem feito ele, incapaz
de estar satisfeito muito tempo num mesmo lugar.
Quando chegou mais perto do topo da montanha que escalava muito vagarosamente
há mais de dois dias avistou as duas paredes formando um dos quatro
cantos do que viria a ser a sua última cabana, um arranjo de pedra
e palha. Um grande salão esculpido em duas grandes rochas, aparentando
ter surgido com a retirada de um bloco de granito de tamanho equivalente
ao de uma pequena casa da cidade, deixando lá o espaço ideal
para a casa de um homem só.
Bastaria construir com forquilhas, cipós e folhas o restante que
faltava, jogar por cima um teto de palha bem trançada para que,
em fim, tivesse o andarilho Ouvídio uma casa só sua para
morar. Assim a fez, sem porta e sem janela.
Seus olhos afeitos ao brilho do ouro logo começaram a ver faíscas
luminosas disparadas lá de adiante na encosta da montanha, distante
dali uns oitocentos metros. Os reflexos lhe chegavam como se fossem flasch
de muitas dessas máquinas fotográficas modernas que se houvessem
espalhadas em muitas mãos escondidas entre a ramagem das árvores
que colonizavam a meia encosta da montanha. Os pontos de luz pareciam
disparados ao mesmo tempo, ao embalo do mesmo vento que empurrava para
frente e para o lado a densa folhagem da mata. Ouvídio não
expressou nenhuma emoção no dia dessa contemplação
das faíscas de prata que lhe chegavam da montanha vizinha. Sabia
que estava vendo diamantes lhe acenando irremediavelmente, querendo que
fosse logo buscá-los para a serventia que têm as pedras preciosas.
Acabou indo, encontrou-os espalhados no chão como se um dia tivessem
servido a brincadeira de meninos guerreando-se com pedrinhas brilhantes.
Havia pontos que se achavam agrupados em três, quatro, oito pepitas
com freqüência impressionável. Não eram grandes,
mas havia aqueles quase do tamanho de uma baga de açaí.
Ouvídio explorou toda a área, escolheu algumas pepitas maiores
e as meteu no bolso consumindo depois toda a tarde na tarefa de cobrir
com terra os muitos pequenos diamantes que se exibiam à superfície
nua. Dormiu junto deles atirado ao chão virgem, era tempo de verão
amazônico, com as noites sempre muito quentes e sem vento.
Quando chegou à cabana na manhã do dia seguinte teve uma
surpresa muito grande, tudo que tinha em casa achava-se revirado, misturado
ao chão da cabana, pouco sal tinha sobrado.
Em meio a enorme desarrumação dos seus pertences espalhados
em toda a cabana estava sonso num canto um leitãozinho queixada
que ficara para trás, certamente abandonado pela vara daqueles
animais que por ali passara na madrugada daquele mesmo dia, causando-lhe
tamanho prejuízo.
Os homens solitários e dos campos sempre são generosos,
Ouvídio era desses homens, não teve raiva dos bichos que
entendeu estarem livres em “suas” terras. De pronto resolveu
adotar o leitãozinho, principalmente considerando que ali mesmo
ao redor da cabana existia em profusão gigantescas árvores
de amapá-doce, cuja seiva leitosa serviria muito bem ao aleitamento
do animalzinho até que pudesse conseguir na floresta seu próprio
alimento. Deu ao porquinho o nome de Caçado.
Rápido o novo companheiro de Ouvídio tornou-se um leitão
forte e excelente guarda do minifúndio que lhes cabia. Sempre caminhava
atrás do dono como um cachorrinho amestrado, obedecia-lhe no mais
das vezes que ordenava, defendia-o como um soldado japonês defende
o seu imperador.
Com o sal acabando Ouvídio resolveu descer a montanha e ir de novo
a Laranjal do Jarí em busca de aviamentos suficientes para mais
uma longa temporada que pretendia bem superior aos quase quinze meses
que já estava sozinho ali no cume da montanha tendo apenas o porco
como companhia. Acumulara um grande punhado de diamantes e julgara ser
hora de mostrá-los em troca de mercadorias e equipamentos que lhe
permitissem uma vida menos dura naquelas montanhas. Acima de tudo queria
comprar com seus diamantes maior liberdade de ir e vir dentro daquela
floresta, porém com a máxima segurança que pudesse
dar a sua descoberta, a si próprio e ao novo companheiro, embora
um porco.
Empreendeu a viagem, gastou seis dias na descida, três deles até
alcançar a margem esquerda do rio Jari, num trecho abaixo do circuito
das muitas e belas cachoeiras que enfeitam o grande rio. Daí até
a cidade Ouvídio fez uma lenta caminhada através da mata
ciliar, avançando apenas depois do escurecer de cada dia. O sangue
e o instinto índios que trazia bem distribuídos em todo
o corpo possibilitavam-no dormir tranqüilo durante os dias abertos
e a evoluir à noite com rapidez e segurança na mata escura
e sem mistério para ele.
Chegando a Laranjal do Jari buscou imediatamente o comerciante Josué,
guardião das suas poucas palavras e nenhuma confidência.
Depois de todos os cuidados que pôde imaginar, Ouvídio abriu
negociações com suas enormes pepitas de diamantes, saindo
ao fim do encontro proprietário de uma pequena embarcação
de alumínio, rápida e rasa do tipo voadeira, um pequeno
motor de popa conhecido na região como “rabeta” - diferenciando-se
o seu pela adaptação de um abafador de som que mandara fazer
em nome da precaução que deveria ter um rico proprietário
de uma grande mina de diamantes - suprimentos à vontade, muita
munição, muito mais sal e pólvora., alem da inclusão
no provimento de uma boa quantidade de açúcar, óleo
de cozinha e isqueiro a gás.
Por causa da enorme quantidade de pequenos igarapés cheios de peixes
existentes nas imediações da montanha onde se localizava
a sua cabana, Ouvídio proveu sua bagagem de grande quantidade de
anzóis de aço de vários tamanhos, zagaias, arpões
e lanternas.
Planejou não sair tão cedo de dentro da mata e por isso
comprou o que julgou precisar para a grande temporada. Concluiu seu acordo
com o comerciante passando-lhe um mapa da mina de diamantes, porém
desenhado de formas a dificultar e retardar o acesso ao local indicado.
Como condição para o cumprimento do trato, estabeleceu que
a busca ao tesouro só se iniciasse seis anos adiante.
Naquele mesmo dia Ouvídio empreendeu viagem de volta, subindo o
rio Jari sem a menor preocupação com o tempo que empregaria
até chegar ao seu destino. Aliás, a medida de tempo para
ele não era usual, não usava relógio nem acumulava
pedrinhas nos bolsos ou fazia traços na rocha nem nós em
cordas para contar os dias. Em verdade, não se preocupava com o
quanto a embarcação adiantaria ou atrasaria a viagem, sabia,
no entanto que muitas vezes teria que transpor cachoeiras e corredeiras
carregando nos ombros as mercadorias, o motor e de resto, a cada obstáculo
maior, a própria embarcação.
Assim, rio acima, sua caminhada de retorno terminou ao amanhecer de um
dia qualquer, Ouvídio avistou seu acampamento sem poder evitar
que um mau presságio lhe fizesse estremecer o corpo cansado e molhado
de suor e água respingada do rio. Sem perder a prudência
que o mantivera vivo até aqueles dias escondeu muito bem a embarcação
e toda a carga que trazia. Armou-se com o rifle de repetição,
municiou-o fartamente e a si também enchendo de balas todos os
bolsos da calça e da camisa. Pendurou o terçado na algibeira
com o cuidado de poder empunhá-lo rapidamente e só depois
começou a esgueirar-se montanha acima até se aproximar o
suficiente da sua cabana para confirmar ou não o mau presságio
que lhe assaltara na chegada.
Ouvídio sabia que o porco do mato é um animal de faro dos
mais apurados entre os que habitam a grande floresta, a convivência
com o Caçado muito lhe serviu para a consolidação
dessa informação, uma vez que desde de tenra idade jamais
o porco deixou de demonstrar que percebia a sua aproximação
ao acampamento, mesmo quando Ouvídio resolvia testá-lo aproximando-se
inteiramente nu ou então valendo-se do contra-vento que o empurrava
ladeira abaixo. Nenhum movimento percebeu nas proximidades de seu acampamento,
o silêncio da mata era o de sempre.
Certificando-se que não havia presença humana possível
nas redondezas, Ouvídio abandonou toda a cautela de que se cercara
inicialmente. Dali em diante venceu a pequena distancia que o separava
da cabana quebrando mato no peito. Mas todo o estalar de varotas quebrando
à sua passagem, folhas secas pisadas e o longo despencar de pedras
montanha abaixo não fizeram com que o valente Caçado aparecesse
para saber o que estava havendo. Não entendia tamanha transformação
no “caráter” do amigo porco, a quem tinha confiado
a guarda da cabana e do restante da fortuna em diamantes que deixara bem
escondida ali mesmo.
Como que desesperado com a adivinhação do que certamente
acontecera ao único amigo, Ouvídio começou a chamar
por ele:
- Porco! - Porco!? - Porco??
E nada. De repente Ouvídio estava no interior de sua cabana sem
a menor percepção de perigo, dominava-o tão somente
o desejo de ouvir o roncado musical com que o amigo costumava ouvir-lhe
e “falar”-lhe nos longos dias e noites que passaram juntos
naquela montanha.
Logo a seguir o trauma: Caçado jazia morto no chão, do seu
focinho e de sua boca correra um fio de sangue e baba talvez a testemunhar
uma maneira selvagem de agressão que o levara a morte. Seu corpo,
o de um animal que já alcançara mais ou menos vinte e cinco
quilos de peso vivo, não apresentava sinais de luta com outros
animais, em volta da cabana e no chão batido de seu interior não
se via rastros de nenhum grande animal capaz de tê-lo destroçado
a ponto de fazê-lo sangrar daquela forma. Tomando-o nos braços
Ouvídio percebeu que o pobre animal havia sido vitimado por uma
violenta pancada na nuca, um golpe desfechado por algum humano bastante
hábil na arte de matar instantaneamente animais como aquele. Isso
ele percebeu quando sentiu com as mãos o afundamento do crânio
na base da nuca.
Tomou-se de enorme tristeza ao concluir que o pobre animal fora vítima
da sua própria docilidade, da sua alegria de afagar e de seguir
sempre de perto o seu dono. Em questões de segundo Ouvídio
relembrou o quanto ele mesmo tinha intervido no aprendizado daquele porquinho,
principalmente no início quando ainda era um bebê se iniciando
no hábito de andar com ele floresta adentro, ao seu lado seguindo-lhe
os passos, nunca tomando-lhe a frente como a desafiar-lhe a condição
de dono.
Antes que tivesse que pensar nos diamantes deixados em algum ponto daquela
cabana Ouvídio tratou de conduzir o corpo inerte do “amigo”
até um lugar à sombra, ao lado da cabana. Antes de depositá-lo
no chão procurou certificar-se de que nenhum grande formigueiro
existisse por perto, sabedor que era de que a presença de sangue
atraía formigas vorazes muito facilmente.
Então, dirigiu-se à arca do seu tesouro ali existente naturalmente
como se fosse um cofre da era da pedra lascada. Na parede de pedra, lateral
esquerda da cabana, mais ou menos a metro e meio de altura aparecia uma
fenda toscamente bloqueada por uma lasca de pedra parecendo uma ocorrência
natural. Com o auxílio do facão afrouxou-a, removeu-a e
nem precisou do auxílio das mãos para certificar-se de que
seus diamantes estavam no mesmo lugar, intocados. Todos estavam lá.
Apalpando-os Ouvídio chorou inconsolavelmente, pensava milhões
de razões pelas quais tivessem matado seu porco daquela maneira.
Por que fazê-lo se não tinham ido ali roubar seus diamantes,
se Caçado era apenas alarmista e não um “cão”
feroz com disposição e competência para atacar seus
adversários?
Por fim pensava novamente - como várias vezes pensara diante
do ouro garimpado - que a riqueza representada pelas pedras preciosas
não era mesmo o que procurara a vida inteira. Para ele o brilho
das pedras, do ouro e do diamante mais precisamente, nunca fora mais que
uma grande solidão, um encontro com a imensidão do nada
que o cercara tantos anos, uma perda das pouquíssimas coisas que
acumulara na dura vida até então.
Somente naquele segundo decidiu várias vezes devolver à
montanha todos aqueles diamantes já recolhidos, jogaria-os montanha
abaixo, rios adentro, sempre escolhendo os pontos em que uns fossem de
muito difícil acesso e outros onde a profundidade fosse impeditiva
aos faiscadores de diamantes. Também pensou que era sua obrigação
recaminhar pela floresta até apagar todos os vestígios de
sua passagem que pudessem indicar a mais alguém a existência
daquela riqueza no chão do Tumucumaque.
Outra vez prevaleceu o sentimento caboclo que o fizera um andarilho das
matas quase que a vida inteira: voltou-se ao corpo inerte do amigo porco
em detrimento de mais pensar no que fazer com seu tesouro. Rapidamente
cavou-lhe uma cova profunda, adornou-a com a maior pepita de diamante
que achara até aquele momento e sobre ela depositou o cadáver
do amigo porco, chamado Caçado. Depois completou a cova até
nivelá-la ao chão, a partir daí marcando-a para a
eternidade com um farto amontoado de pedras especiais que por ali se viam
em profusão.
Rezar não rezou, não sabia fazê-lo formalmente, mas
uivou de dor, disse palavras só suas a um porco já morto
há pelo menos três dias. Depois se afastou dali desferindo
fortes golpes de facão nos troncos das árvores mais frondosas
que ficavam à sua passagem até atingir o pé da montanha,
onde escondera a embarcação.
Verdadeiramente sofrido, naquele momento, Ouvídio buscou a caixa
onde se encontrava a bebida destilada cuidadosamente guardada. Estranhamente
teve paciência para abrir uma e guardar no bolso a tampa, demonstrando
claramente que tinha a intenção de reaproveitá-la.
Com igual destreza tirou nacos de charque em fardo que levava para sua
alimentação, ali mesmo sentou-se ao chão, bebeu e
comeu o quanto agüentou, dormiu e sofreu as conseqüências
da ingestão exagerada da bebida forte e doce e da carne muito salgada.
Depois de plenamente restabelecido do sofrimento a que fora submetido
pela perda do amigo porco e dos efeitos da bebedeira, Ouvídio tomou
o caminho do rio Jari primeiramente carregando nos ombros o motor rabeta
e nas mãos os mantimentos que tinha. Calmamente várias vezes
retornou para buscar mais combustível para a embarcação,
além de sal, anzol, fósforo, açúcar, café,
uma pequena lona plástica e cordas que já trouxera, formando
um amontoado no espaço da pequena praia de embarque.
Já eram quase três horas da tarde quando Ouvídio se
acomodou dentro da embarcação e deu partida no motor navegando
a contracorrente do rio Jari. Deixava para trás em sua cabana,
diamantes, roupas e a única fotografia familiar que carregava consigo
como um grande segredo, o maior de sua vida.
Outra vez sozinho Ouvídio continuava sua interminável caminhada,
mais uma vez seu coração pronunciava palavras inaudíveis,
sem conseguir fazer-se ouvir enquanto gemia e gritava sua solidão
para o espelho d’água do rio Jari, num ponto onde se assemelhava
a uma espécie de garganta da imensa floresta amazônica, que
de um lado e outro lhe acenava.
Já naqueles dias era popular uma invenção mecânica
muito conveniente e agradável ao ribeirinho ante a necessidade
de subir de descer rios e igarapés amazônicos: o motor “rabeta”,
de dois tempos.
Apropriadamente esse motor propulsor é resistente, de muito fácil
manuseio, de mecânica barata e, mais importante: para lá
de econômico. Rio abaixo ou acima, em três horas de funcionamento
consumia apenas um litro de combustível - mistura gasolina/óleo.
Sendo assim, Ouvídio poderia navegar até muito longe, ou
pelo menos por muito tempo. Quase todo o convés de sua embarcação
estava tomado por galões de combustível já preparado
para alimentar o pequeno motor de 2,5 cv. Seguramente, Ouvídio,
contava com pelo menos duzentos litros para a viagem.
Até atingir as imediações da grande corredeira de
Tacará, Ouvídio ainda foi visto pelos últimos moradores
ribeirinhos do grande rio Jarí. Dali para cima, como não
se tinha notícias de habitantes fixos das barrancas, Ouvídio
deixou de existir.
Para ele, nômade de si mesmo, as grandes escarpas rochosas e o adensamento
da floresta que, praticamente, impossibilitavam a permanência humana
na região, não pareciam obstáculos suficientes para
demovê-lo da sua inabalável corrida de volta ao desconhecido.
Dali em diante, Ouvídio é só uma lembrança
e um espírito vagante ao qual se atribui o ronco do rio Jarí,
cuja sonoridade, para muitos viajantes solitários faz lembrar a
do motor rabeta e a valentia dos habitantes das terras parus, onde teriam
existido os bravos índios wirapiã da grande nação
tyrió-tumucumaque que por ali caçavam nos dias de lua minguante
que acontecessem dentro dos meses de outubro. xxxxx.
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