Fascínio
de Sereia - A Yara
Zoe de Camaris
Meu
valente apigáua!
Vem habitar comigo a mesma taba
Dormir na mesma tépida quiçáua!
Sou a mãi d'água te farei puranga
Tens nos meus olhos a melhor puçanga
Yara
Acrísio Mota - 1898
Metade
mulher, metade monstro. Ninfa e demônio. E no entanto, um dos
mais fascinantes mitos da história da humanidade, sinônimo
de sedução e perigo, de beleza sobrenatural. Da sedução
que supera a sexualidade, se concordarmos com Baudrillard.
Alguns histórias falam de tragédias de amor, como o de
Loreley do Reno. Outros, da sereia que, nunca tendo sido mulher, se
apaixona por um mortal; outros ainda de mulheres que foram abusadas
e se voltam contra os que causaram sua dor e humilhação.
Espíritos de moças afogadas que após a metamorfose
tornam-se impiedosas devoradoras de carne humana.
A
primeira referência destes seres aquáticos está
na Odisséia, de Homero. Ovídio irá caracterizá-las
como pássaros de plumas avermelhadas com rosto de mulher, segundo
o relato de Jorge Luís Borges, que também nos conta que
a lei da sereia é morrer quando alguém não se deixa
seduzir por seu feitiço.
Seu
famigerado canto é hipnótico, sua música, arrebatadora.
No entanto, Franz Kafka foi pontual em seu conto, O Silêncio das
Sereias. Elas possuem uma arma maior do que o seu canto. O silêncio.
Eu acrescentaria o mistério. A liberdade e a rebeldia.
De índole indomesticável, uma sereia nunca é possuída,
a não ser que este seja o seu desejo. As Rusalki, sereias russas
e eslavas, são terrivelmente vingativas. Se uma irmã é
pega, o destino do homem está traçado: morrerá
dilacerado.
São chamadas de Spunkies na Escócia, de Groachs na Bretanha,
de Gwaragedd em Gales, de Ninguyo no Japão, de Zavas na Polônia,
de Mouras encantadas em Portugal, de Mães d'água na África.
É
Dagon e Partênope, Lígia e Leucósia, Teodora e Murgen.
E
no Brasil, a sereia se chama Yara. Diz a lenda1:
"Yara, a jovem Tupi, era a mais formosa mulher das tribos que
habitavam ao longo do rio Amazonas. Por sua doçura, todos os
animais e as plantas a amavam. Mantinha-se, entretanto, indiferente
aos muitos admiradores da tribo.
Numa tarde de verão, mesmo após o Sol se pôr, Yara
permanecia no banho, quando foi surpreendida por um grupo de homens
estranhos. Sem condições de fugir, a jovem foi agarrada
e amordaçada. Acabou por desmaiar, sendo, mesmo assim, violentada
e atirada ao rio.
O espírito das águas transformou o corpo de Yara num
ser duplo. Continuaria humana da cintura para cima, tornando-se peixe
no restante. Yara passou a ser uma sereia, cujo canto atrai os homens
de maneira irresistível. Ao verem a linda criatura, eles se aproximam
dela, que os abraça e os arrasta às profundezas, de onde
nunca mais voltarão."
A lenda acima mostra uma face até então desconhecida do
mito, que sempre apresenta a Yara como um encantado aquático,
pouco se falando, no Brasil, sobre uma origem humana. Normalmente, é
retratada como uma mulher de cabelos muito longos, sobrenaturalmente
verdes ou de um louro dourado, que usa um pente de ouro e carrega os
homens para o fundo do rio.
É interessante perceber que sendo um mito híbrido, como
grande parte dos mitos, aliás, essa história encontre
ressonâncias em uma fábula que inspirou um poema de Pablo
Neruda. O poema nos fala de uma sereia que entra completamente nua em
uma taverna, repleta de homens bêbados. Eles começam a
cuspir insultos na sereia perdida, extraviada. E ela, como não
sabia chorar, não chorava. Como não sabia se vestir, não
se vestia. Ela não falava, pois não sabia falar. Os olhos
da sereia eram feitos da cor de um amor distante, seus braços
construídos de topázios gêmeos. Tatuaram-na então
estes homens, com pedaços de rolha queimada e cigarros e riram
dela até caírem, totalmente ébrios. A sereia, repentinamente,
sai pela porta e assim que entra no rio, volta ter a pele limpa e macia,
reluzente como uma pedra na chuva. E sem voltar seus olhos para a taverna
imunda, parte a nadar. E nada até morrer.
Sem querer entrar no terreno da psicologia, a sereia parece sempre trazer
no peito uma grande dor de amor. Normalmente, é vítima
de alguma injustiça, quando na sua forma humana. E pelo jeito,
nem aqui no Brasil escapou da sua tristeza e de uma inegável
melancolia, raiz do seu instinto rebelde e vingativo. A dor e a falta
da sua contraparte masculina passam a fazer parte de sua natureza, de
modo indistinto. E por isso causa devastação, por onde
quer que encante.
As influências que o mito da brasileira Yara sofreu vieram das
mais diversas procedências. E encontraram um fértil terreno
no Brasil, terra de Cy aquáticas, dos mitos da serpente primeva,
dos terríveis ipupyraras, seus parentes autócnes.
Os ipupyaras são monstros da água, normalmente dados como
seres masculinos. Pelo menos é isso que encontramos em Osvaldo
Orico, Câmara Cascudo, Teodoro Sampaio e outros medalhões
do nosso folclore. Talvez o primeiro registro dos ipupyaras tenha sido
feito por José de Anchieta: "Há também nos
rios outros fantasmas, que chamam de Igputiara, isto é, que moram
n'água, que matam do mesmo modo os índios".
Podemos
encontrar alguns subsídios sobre os ipupyaras também no
livro de Afonso de Escragnolle Taunay, "Zoologia Fantástica
do Brasil", editado pela Edusp. Nele, encontramos um dos registros
dos homens-aquáticos, dado pelo jesuíta Fernão
Cardim2.
"Estes homens marinhos se chamam na língua Igpupiara;
têm-lhe os naturais tão grande medo que só de cuidarem
nele morrem muitos, e nenhum que o vê escapa; alguns morreram
já e perguntando-lhes a causa, diziam que tinham visto este monstro;
parecem-se com homens propriamente de boa estatura, mas têm os
olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos
compridos, e são formosas; acham-se estes monstros nas barras
dos rios doces. Em Jagoarigipe sete ou oito léguas da Bahia se
têm achado muito; no ano de oitenta e dois indo um Índio
pescar, foi perseguido de um, e acolhendo-se em sua jangada o contou
ao senhor; o senhor para animar o Índio quer ir ver o monstro,
e estando descuidado com uma mão fora da canoa, pegou dele, e
o levou sem mais parecer, e no mesmo ano morreu outro Índio de
Francisco Lourenço Caiero. Em Porto Seguro se vêem alguns,
e já têm morto alguns Índios. O modo que têm
para matar é: abraçam-se com a pessoa tão fortemente
beijando-a e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços,
ficando inteira, e como a sentem morta, dão alguns gemidos como
de sentimento e, largando-a, fogem; e se levam alguns comem-lhe somente
os olhos, narizes e a ponta dos dedos dos pés e das mãos,
e as genitálias, e assim os acham de ordinário pelas praias
com estas coisas menos."
É interessante que os jesuítas e viajantes dão
notícias sobre a existência dessas figuras rodeando-lhes
de aura de 'verdade', ou seja, como se fosse um fato incontestável.
E podemos notar também o registro, em 1583, dos ipupyaras femininos.
Ou seja, depois de 1500, o que a crônica colonial traz de mais
puramente indígena, no que concerne a monstros ou deidades da
água, são os ipupyaras.
Taunay, ao sintetizar o 'crème de la crème' da Zoologia
Fantástica na crônica colonial, relata que os ipupyaras
eram bastante aproximados do peixe-boi, ou ainda, a uma espécie
de leão marinho. Existe a Cy (Mãe) do Peixe Boi, a Xundaráua,
uma espécie de madrinha da pesca. Faz com que os pescadores não
voltem do rio sem trazer um daqueles mamíferos. Exige, porém,
que não se mate o primeiro que surja e que não se mate
mais de um animal. Quem violar essa determinação nunca
mais terá êxito nas suas empresas. Esse dado denota que
existe algum tipo de culto ("culto" a maneira
indígena, é bom frisar) do Peixe Boi.
E o mito da Cobra Grande? É Rainha dos encantados no ciclo fluviônico
(ictiológico ou aquático) dos indígenas. As lendas
aquáticas originaram-se do ctonismo silvícola e sua idéia
fundamental repousa na idéia de um ser feminino, corporificado
na água. Um dos melhores exemplos é a Lenda do Nascimento
da Noite. A melhor versão e também a menos simplificada
é dada por Adaucto Fernandes, em que a Cobra Grande é
relacionada a uma deidade feminina da água, Amana.
Vejamos o mito Cobra Grande, original do Rio Branco:
"Uma das lendas da Boiúna, conta que uma linda cunhã,
de grandes e vibrantes olhos negros, costumava andar na sua canoa pelo
Rio Branco. Ela encantava a todos com a sua beleza e do seu corpo emanavam
raios luminosos que se transformavam em música e atraiam os peixes.
Por isso, acreditavam os pescadores que, quando ela singrava pelas águas,
a pesca seria farta. Suspenso no seu colo estava sempre o Muirakitã,
seu amuleto sagrado. Um dia, o Rio Branco, já tomado de amores
pela jovem, também começou a emanar raios luminosos. E
pelo efeito mágico do Muirakitã, os raios de luz da cunhã
e as emanações do rio cruzaram-se, o que transformou a
moça em uma enorme cobra, a Boiúna. Nas noites de lua
cheia, a guardiã do Rio aparece e traz muitos peixes para que
os habitantes ribeirinhos possam alimentar-se. Agora, se alguém
aparece para depredar o rio a Boiúna vira as embarcações,
matando seus barqueiros."
A
imensa massa fluvial brasileira, país que acolhe o maior rio
do mundo, não poderia deixar de ter suas Mães d'Água.
É uma pena que nosso povo primevo, ágrafo, não
as tenha registrado senão nos relatos orais ou nas peças
de cerâmica. Dependemos dos primeiros cronistas, sempre a registrar
os mitos com filtro etenocêntrico e agora, felizmente, do competente
trabalho de resgate de antropólogos, etnólogos e arqueólogos.
A
Cobra Grande é a principal raíz do mitos aquáticos.
Temos além do rio, uma das maiores cobras do mundo, a anaconda
ou sucuriju, correlato real da Cobra Grande.
Continuando com as cobras, visitemos o mito de Tuluperê3:
"Sendo
o animal que mais se aproxima do simbolismo cíclico do vegetal,
a cobra encontra uma relação com os produtos da tecedura
e da fiação. No Brasil, a representante é Tuluperê,
outra das faces da Cobra Grande. Tuluperê, segundo nos conta a
Lenda da Cestaria, vivia nas profundezas do Rio Paru, um afluente do
Amazonas. Suas cores eram o vermelho e o negro, sendo como um híbrido
da sucuriju e da jibóia. A cobra virava os barcos e quando atracava
alguma vítima, apartava-a até a morte e então,
a devorava. Certo dia, o pajé da tribo dos Wayana, do tronco
Karib, conseguiu matar a flechadas Tuluperê e guardaram na memória
os desenhos que ornamentavam a sua pele. Daí por diante, passaram
a reproduzir esses grafismos em suas cestas".
Tendo permanecido na arte da cestaria, o mito de Tuluperê é
revivido: mito e ritual.
Temos
também no nosso repertório as mulheres míticas,
algumas delas transformadas em deidades da água como Amana (Karib);
Maïsö (Paresi); Naoretá (Tupari); Katxuréu (Macurap)
e Iururaruaçú (Uaiás).
Das deidades acima citadas, não é possível afirmar
que persistam cultos e ritos. Mas existem uma, em especial, que faz
parte de toda uma ritualística indígena: Tauvyma, personagem
mítico feminino dos Asuriní do Xingu, um espírito
das águas que um dia foi mulher. Sua presença nas águas
é chamada de Tauva e faz parte de um corpo extenso de rituais.
Ainda dentro do aspecto ritualístico temos uma série de
divindades invocadas pelos xamãs Kaapor, chamadas de Irïwär,
que se acredita ajudarem os xamãs a predizer o futuro, a restaurar
suprimentos de caça esgotados e a diagnosticar e curar doenças.
O xamanismo envolve uma performance pública, assistida por habitantes
da aldeia de todas as idades. Os xamãs Ka'apor afirmam ter sido
chamados espiritualmente para esta ocupação quando arremessados
em um córrego pela Mãe d´Água.
A
nossa Yara, a sereia brasileira, é cria híbrida de muitos
mitos, assim como o nosso povo é fruto de várias etnias.
Mas também é, sem dúvida alguma, uma sobrevivência
do imaginário dos povos indígenas, das mais variadas clãs
e estirpes. E é das sereias que a imaginação se
alimenta nas serenas madrugadas das nossas matas. E a história
persiste, mostrando a enorme vitalidade de um dos mais belos mitos que
a humanidade já criou.
Segurem-se nos mastros, meninos, ao escutarem um canto doce em uma noite
de lua, ao passarem por um igarapé distante ...
Em Cy,
Zoe de Camaris
1-
http://www.estadao.com.br/villasboas/yara.htm
LENDAS INDÍGENAS - Texto adaptado do livro Lendas e Mitos dos
Índios Brasileiros
FTD Editora - Walde-Mar de Andrade e Silva
2
- TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Zoologia Fantástica do Brasil.
São Paulo: Edusp. p.102,103
3
- ver em VELTHEM, Lúcia Hussak van. A Pele de Tuluperê:
uma etnografia dos
trançados Wayana. Belém: Museu Paraense Emílio
Goeldi, Coleção Eduardo
Galvão, 1998, 251p.
4
- MÜLLER, Regina Polo. Os Asuriní do Xingu: história
e arte. Campinas: Editora
da Unicamp, 1990.